(UEL/2010) No pensamento ético-político de Platão, a organização no Estado Ideal reflete a justiça concebida como a disposição das
faculdades da alma que faz com que cada uma delas cumpra a função que lhe é própria. No Livro V de A República, Platão apresentou o Estado Ideal como governo dos melhores selecionados. Para garantir que a raça dos guardiões se mantivesse pura, o filósofo escreveu:
É preciso que os homens superiores se encontrem com as mulheres superiores o maior número de vezes possível, e inversamente, os inferiores com as inferiores, e que se crie a descendência daqueles, e a destes não, se queremos que o rebanho se eleve às alturas.
(Adaptado de: PLATÃO. A República. 7. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p.227-228.)
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o pensamento ético-político de Platão é correto afirmar:
a) No Estado Ideal, a escolha dos mais aptos para governar a sociedade expressa uma exigência que está de acordo com a natureza.
b) O Estado Ideal prospera melhor com uma massa humana difusamente misturada, em que os homens e mulheres livremente se escolhem.
c) O reconhecimento da honra como fundamento da organização do Estado Ideal torna legítima a supremacia dos melhores sobre as classes inferiores.
d) A condição necessária para que se realize o Estado Ideal é que as ocupações próprias de homens e mulheres sejam atribuídas por suas qualidades distintas.
e) O Estado Ideal apresenta-se como a tentativa de organizar a sociedade dos melhores fundada na riqueza como valor supremo.
Resolução:
Correta. Segundo Platão, cada ser humano não nasce em tudo semelhante aos outros, mas com diferenças dadas pela natureza que os torna aptos a realizarem trabalhos distintos (cf. A República 369a – 370e). Assim, para a constituição do Estado Ideal, o filósofo propõe a seleção (e uma educação peculiar correspondente) dos melhores homens e mulheres que possuam as mesmas aptidões para governar em decorrência da natureza e, portanto, obrigatória e necessária. Não obstante a diferença natural entre o homem e a mulher, Platão entende que ambos podem apresentar as mesmas aptidões naturais para o desempenho de uma mesma função ou profissão (A República 453e). Esta seleção
apresenta-se coerente com o princípio platônico de que a justiça de um Estado construído organicamente consiste em cada um cumprir a função que lhe é atribuída pela natureza. Convém ressaltar que a aristocracia platônica não é constituída por uma nobreza de sangue – de caráter hereditário – cujos indivíduos desde o nascimento possuam o direito de, a seu tempo, governarem o Estado. Mas há que considerar também que o governo dos melhores selecionados, em virtude de suas aptidões naturais, deve se basear na melhor educação. Portanto, Platão não propõe educar na areté uma nobreza de sangue já existente, mas formar esta elite mediante a seleção dos representantes da
suprema areté, com base na natureza. Para este propósito, o governante deve sacrificar sua individualidade, sua vida
privada e o direito de propriedade ao Estado.
(PLATÃO. A República. 6.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1990; cf. JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.559-567; cf. REALE,
G. História da Filosofia Antiga. vol. 2: Platão e Aristóteles. São Paulo: Loyola, 1994. pp. 243-251.).
b) Incorreta. De acordo com Platão (A República 458a-460e), no Estado Ideal, compreende-se que o controle seletivo para constituir a elite aristocrática – governantes ou guardiães do Estado – deve se realizar pelo conúbio dos melhores homens com as melhores mulheres. Deste modo, não se pode permitir que a população se constitua de forma misturada e difusa, sem qualquer limite da procriação ou sem coibir a liberdade na escolha das esposas. Aos melhores homens e mulheres selecionados é vedado contrair uniões que a autoridade competente não aprove. Segundo JAEGER, “para Platão o Estado perfeito prospera melhor em condições fáceis de avaliar do que com um massa humana
difusamente misturada […]”. Entretanto,o Estado platônico favorece superiormente a união dos melhores homens e mulheres selecionados e submetidos a uma vida comum resguardada e, dentro do possível, põe obstáculos aos menos aptos. Segundo Platão (A República 459d-459e), “que os homens superiores se encontrem com as mulheres superiores o maior número de vezes possível e, inversamente, os inferiores com as inferiores, e que se crie a descendência daqueles, e a destes não, se queremos que o rebanho se eleve às alturas […]” (A República 459d-459e).
(PLATÃO, A República. 6.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1990; cf. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p.565-567).
c) Incorreta. Duas considerações preliminares devem ser levadas em conta: por um lado, de acordo com o texto apresentado na questão, a organização no Estado Ideal, em Platão, reflete a justiça concebida como a disposição das faculdades da alma que faz com que cada uma delas cumpra a função que lhe é própria e, de acordo com a sua natureza, determina aquela que domina ou se deixa dominar. Por outro lado, o Estado Ideal apresentado por Platão é, na verdade, uma aristocracia. Segundo Giovanni Reale, “um Estado guardado e governado pelos melhores por natureza e por educação, fundado sobre a virtude como valor supremo e caracterizado pela primazia, nos seus cidadãos, da parte racional da alma” (REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol II. São Paulo: Loyola, 1994. p.264). Dentre as formas corrompidas do Estado, Platão elenca a timocracia que rompe o equilíbrio essencial do Estado perfeito porque substitui a honra pela virtude. A vida pública é impulsionada pela “sede de honras e, portanto, a ambição, enquanto na vida particular já prevalece, habilmente escondida e mascarada, a sede de dinheiro” (ibidem, p. 264).
Portanto, Platão jamais constitui a honra como valor ético supremo e, tampouco, como fundamento do Estado Ideal.
d) Incorreta. A concepção platônica de Estado Ideal opera uma inversão conceitual da função da mulher grega. Em geral, o grego recolhia a mulher no recinto doméstico confiando-lhe a administração da casa e a criação dos filhos. Ela deveria ser mantida longe das atividades da cultura e da ginástica, das atividades bélicas e políticas. No livro V de A República (455d-456a), Platão nega a atribuição de qualquer ofício de administração do Estado diferenciando homens e mulheres em razão das diferenças de gênero. Para além das diferenças de gênero, Platão entende que tal atribuição deve levar em conta as disposições da natureza que estão igualmente repartidas entre os dois sexos. Não existem ocupações próprias de homens e mulheres em razão da diferença de gênero. Neste sentido, a mulher, tanto quanto o homem, é chamada pela natureza para o exercício de todas as funções no Estado Ideal. A única ressalva é que ela é apenas mais fraca fisicamente que o homem. No entanto, dado que não possuem qualidades distintas para ocupar estas funções, ambos possuem a mesma natureza passível de ser educada da mesma forma. (cf. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. pp. 551-574).
e) Incorreta. Para Platão, a riqueza não poderia ser concebida como valor supremo e, por este modo, como fundamento teórico ou como condição para a realização do Estado Ideal, dado que este manifesta o justo equilíbrio das faculdades da alma humana. A riqueza funda, dentre outras, uma forma corrompida de governo: a oligarquia. Esta assinala a decadência ulterior dos valores porque o senhorio da riqueza substitui o da virtude. Segundo Giovanni Reale, na oligarquia, os ricos gerem a coisa pública e os pobres são desprezados. O conflito entre ricos e pobres se torna permanente, pois não há qualquer valor superior à riqueza e à pobreza que possibilite a mediação. Rompe-se o equilíbrio, por fim, a justiça. (cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. II. São Paulo: Loyola, 1994. p.264). Não é uma aristocracia fundada na nobreza de sangue ou tampouco uma oligarquia fundada em uma classe de proprietários que serve de fundamento à existência do Estado platônico, mas a sua perfeição com base na completa unidade e coesão do Estado e de suas partes: a justiça. Tal justiça espelha o divino, o absoluto: o Bem no qual o Estado alcança a sua plena definição e realização. O Bem supremo torna-se, assim, além do fundamento do ser e do cosmo, e da vida privada dos homens, também o fundamento da vida dos homens na sua dimensão política.
(cf. JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.559-567; cf. REALE. Giovanni. História da Filosofia Antiga. vol. II. São Paulo: Loyola, 1994, pp.256-274).
(Comentário da banca elaboradora de provas da UEL)
Resp.: A